Senso moral e consciência moral
Marilena Chauí
Muitas vezes, tomamos conhecimento de
movimentos nacionais e internacionais de luta contra a fome. Ficamos sabendo
que, em outros países e no nosso, milhares de pessoas, sobretudo crianças e
velhos, morrem de penúria e inanição. Sentimos piedade. Sentimos indignação
diante de tamanha injustiça (especialmente quando vemos o desperdício dos que
não têm fome e vivem na abundância). Sentimos responsabilidade. Movidos pela
solidariedade, participamos de campanhas contra a fome. Nossos sentimentos e
nossas ações exprimem nosso senso moral.
Marilena Chauí
Convite à Filosofia
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Quantas vezes, levados por algum impulso
incontrolável ou por alguma emoção forte (medo, orgulho, ambição, vaidade,
covardia), fazemos alguma coisa de que, depois, sentimos vergonha, remorso,
culpa. Gostaríamos de voltar atrás no tempo e agir de modo diferente. Esses
sentimentos também exprimem nosso senso moral.
Em muitas ocasiões, ficamos contentes e emocionados
diante de uma pessoa cujas palavras e ações manifestam honestidade, honradez,
espírito de justiça, altruísmo, mesmo quando tudo isso lhe custa sacrifícios.
Sentimos que há grandeza e dignidade nessa pessoa. Temos admiração por ela e
desejamos imitá-la. Tais sentimentos e admiração também exprimem nosso senso
moral.
Não raras vezes somos tomados pelo horror
diante da violência: chacinas de seres humanos e animais, linchamentos,
assassinatos brutais, estupros, genocídio, torturas e suplícios. Com
frequência, ficamos indignados ao saber que um inocente foi injustamente acusado
e condenado, enquanto o verdadeiro culpado permanece impune. Sentimos cólera
diante do cinismo dos mentirosos, dos que usam outras pessoas como instrumento
para seus interesses e para conseguir vantagens à custa da boa-fé de outros.
Todos esses sentimentos manifestam nosso senso moral.
Vivemos certas situações, ou sabemos que foram
vividas por outros, como situações de extrema aflição e angústia. Assim, por
exemplo, uma pessoa querida, com uma doença terminal, está viva apenas porque
seu corpo está ligado a máquinas que a conservam. Suas dores são intoleráveis.
Inconsciente, geme no sofrimento. Não seria melhor que descansasse em paz? Não
seria preferível deixá-la morrer? Podemos desligar os aparelhos? Ou não temos o
direito de fazê-lo? Que fazer? Qual a ação correta?
Uma jovem descobre que está grávida. Sente que
seu corpo e seu espírito ainda não estão preparados para a gravidez. Sabe que
seu parceiro, mesmo que deseje apoiá-la, é tão jovem e despreparado quanto ela
e que ambos não terão como se responsabilizar plenamente pela gestação, pelo
parto e pela criação de um filho. Ambos estão desorientados. Não sabem se
poderão contar com o auxílio de suas famílias (se as tiverem).
Se ela for apenas estudante, terá que deixar a
escola para trabalhar, a fim de pagar o parto e arcar com as despesas da
criança. Sua vida e seu futuro mudarão para sempre. Se trabalha, sabe que
perderá o emprego, porque vive numa sociedade onde os patrões discriminam as
mulheres grávidas, sobretudo as solteiras. Receia não contar com os amigos. Ao
mesmo tempo, porém, deseja a criança, sonha com ela, mas teme dar-lhe uma vida
de miséria e ser injusta com quem não pediu para nascer. Pode fazer um aborto?
Deve fazê-lo?
Um pai de família desempregado, com vários
filhos pequenos e a esposa doente, recebe uma oferta de emprego, mas que exige
que seja desonesto e cometa irregularidades que beneficiem seu patrão. Sabe que
o trabalho lhe permitirá sustentar os filhos e pagar o tratamento da esposa.
Pode aceitar o emprego, mesmo sabendo o que será exigido dele? Ou deve
recusá-lo e ver os filhos com fome e a mulher morrendo?
Um rapaz namora, há tempos, uma moça de quem
gosta muito e é por ela correspondido. Conhece uma outra. Apaixona-se
perdidamente e é correspondido. Ama duas mulheres e ambas o amam. Pode ter dois
amores simultâneos, ou estará traindo a ambos e a si mesmo? Deve magoar uma
delas e a si mesmo, rompendo com uma para ficar com a outra? O amor exige uma
única pessoa amada ou pode ser múltiplo? Que sentirão as duas mulheres, se ele
lhes contar o que se passa? Ou deverá mentir para ambas? Que fazer? Se,
enquanto está atormentado pela decisão, um conhecido o vê ora com uma das
mulheres, ora com a outra e, conhecendo uma delas, deve contar a ela o que viu?
Em nome da amizade, deve falar ou calar?
Uma mulher vê um roubo. Vê uma criança
maltrapilha e esfomeada roubar frutas e pães numa mercearia. Sabe que o dono da
mercearia está passando por muitas dificuldades e que o roubo fará diferença
para ele. Mas também vê a miséria e a fome da criança. Deve denunciá-la,
julgando que com isso a criança não se tornará um adulto ladrão e o
proprietário da mercearia não terá prejuízo? Ou deverá silenciar, pois a
criança corre o risco de receber punição excessiva, ser levada para a polícia,
ser jogada novamente às ruas e, agora, revoltada, passar do furto ao homicídio?
Que fazer?
Situações como essas – mais dramáticas ou
menos dramáticas – surgem sempre em nossas vidas. Nossas dúvidas quanto à
decisão a tomar não manifestam apenas nosso senso moral, mas também põem à
prova nossa consciência moral, pois exigem que decidamos o que fazer, que
justifiquemos para nós mesmos e Marilena Chauí para os outros as razões de
nossas decisões e que assumamos todas as consequências delas, porque somos responsáveis
por nossas opções.
Todos os exemplos mencionados indicam que o
senso moral e a consciência moral referem-se a valores (justiça, honradez,
espírito de sacrifício, integridade, generosidade), a sentimentos provocados
pelos valores (admiração, vergonha, culpa, remorso, contentamento, cólera,
amor, dúvida, medo) e a decisões que conduzem a ações com consequências para
nós e para os outros. Embora os conteúdos dos valores variem, podemos notar que
estão referidos a um valor mais profundo, mesmo que apenas subentendido: o bom
ou o bem. Os sentimentos e as ações, nascidos de uma opção entre o bom e o mau
ou entre o bem e o mal, também estão referidos a algo mais profundo e
subentendido: nosso desejo de afastar a dor e o sofrimento e de alcançar a felicidade,
seja por ficarmos contentes conosco mesmos, seja por recebermos a aprovação dos
outros.
O senso e a consciência moral dizem respeito a
valores, sentimentos, intenções, decisões e ações referidos ao bem e ao mal e
ao desejo de felicidade. Dizem respeito às relações que mantemos com os outros
e, portanto, nascem e existem como parte de nossa vida intersubjetiva.
Juízo de fato e de valor
Se dissermos: “Está chovendo”, estaremos
enunciando um acontecimento constatado por nós e o juízo proferido é um juízo
de fato. Se, porém, falarmos: “A chuva é boa para as plantas” ou “A chuva é
bela”, estaremos interpretando e avaliando o acontecimento. Nesse caso,
proferimos um juízo de valor.
Juízos de fato são aqueles que dizem o que as
coisas são, como são e por que são. Em nossa vida cotidiana, mas também na
metafísica e nas ciências, os juízos de fato estão presentes. Diferentemente
deles, os juízos de valor - avaliações sobre coisas, pessoas e situações - são
proferidos na moral, nas artes, na política, na religião.
Juízos de valor avaliam coisas, pessoas,
ações, experiências, acontecimentos, sentimentos, estados de espírito,
intenções e decisões como bons ou maus, desejáveis ou indesejáveis.
Os juízos éticos de valor são também
normativos, isto é, enunciam normas que determinam o dever ser de nossos
sentimentos, nossos atos, nossos comportamentos. São juízos que enunciam
obrigações e avaliam intenções e ações segundo o critério do correto e do
incorreto.
Os juízos éticos de valor nos dizem o que são
o bem, o mal, a felicidade. Os juízos éticos normativos nos dizem que
sentimentos, intenções, atos e comportamentos devemos ter ou fazer para
alcançarmos o bem e a felicidade. Enunciam também que atos, sentimentos,
intenções e comportamentos são condenáveis ou incorretos do ponto de vista
moral.
Como se pode observar, senso moral e
consciência moral são inseparáveis da vida cultural, uma vez que esta define
para seus membros os valores positivos e negativos que devem respeitar ou
detestar.
Qual a origem da diferença entre os dois tipos
de juízos? A diferença entre a Natureza e a Cultura. A primeira, como vimos, é
constituída por estruturas e processos necessários, que existem em si e por si
mesmos, independentemente de nós: a chuva é um fenômeno meteorológico cujas
causas e cujos efeitos necessários podemos constatar e explicar.
Por sua vez, a Cultura nasce da maneira como
os seres humanos interpretam a si mesmos e suas relações com a Natureza,
acrescentando-lhe sentidos novos, intervindo nela, alterando-a através do
trabalho e da técnica, dando-lhe valores. Dizer que a chuva é boa para as
plantas pressupõe a relação cultural dos humanos com a Natureza, através da
agricultura. Considerar a chuva bela pressupõe uma relação valorativa dos
humanos com a Natureza, percebida como objeto de contemplação.
Frequentemente, não notamos a origem cultural
dos valores éticos, do senso moral e da consciência moral, porque somos
educados (cultivados) para eles e neles, como se fossem naturais ou fáticos,
existentes em si e por si mesmos. Para garantir a manutenção dos padrões morais
através do tempo e sua continuidade de geração a geração, as sociedades tendem
a naturalizá-los. A naturalização da existência moral esconde, portanto, o mais
importante da ética: o fato de ela ser criação histórico-cultural.
Ética e violência
Quando acompanhamos a história das ideias
éticas, desde a Antiguidade clássica (greco-romana) até nossos dias, podemos
perceber que, em seu centro, encontrasse o problema da violência e dos meios
para evitá-la, diminuí-la, controlá-la. Diferentes formações sociais e
culturais instituíram conjuntos de valores éticos como padrões de conduta, de
relações intersubjetivas e interpessoais, de comportamentos sociais que
pudessem garantir a integridade física e psíquica de seus membros e a
conservação do grupo social.
Evidentemente, as várias culturas e sociedades
não definiram e nem definem a violência da mesma maneira, mas, ao contrário,
dão-lhe conteúdos diferentes, segundo os tempos e os lugares. No entanto,
malgrado as diferenças, certos aspectos da violência são percebidos da mesma
maneira, nas várias culturas e sociedades, formando o fundo comum contra o qual
os valores éticos são erguidos. Fundamentalmente, a violência é percebida como
exercício da força física e da coação psíquica para obrigar alguém a fazer
alguma coisa contrária a si, contrária aos seus interesses e desejos, contrária
ao seu corpo e à sua consciência, causando-lhe danos profundos e irreparáveis,
como a morte, a loucura, a autoagressão ou a agressão aos outros.
Quando uma cultura e uma sociedade definem o
que entendem por mal, crime e vício circunscrevem aquilo que julgam violência
contra um indivíduo ou contra o grupo. Simultaneamente, erguem os valores
positivos – o bem e a virtude – como barreiras éticas contra a violência.
Em nossa cultura, a violência é entendida como
o uso da força física e do constrangimento psíquico para obrigar alguém a agir
de modo contrário à sua natureza e ao seu ser. A violência é a violação da
integridade física e psíquica, da dignidade humana de alguém. Eis por que o
assassinato, a tortura, a injustiça, a mentira, o estupro, a calúnia, a má-fé,
o roubo são considerados violência, imoralidade e crime.
Considerando que a humanidade dos humanos
reside no fato de serem racionais, dotados de vontade livre, de capacidade para
a comunicação e para a vida em sociedade, de capacidade para interagir com a
Natureza e com o tempo, nossa cultura e sociedade nos definem como sujeitos do
conhecimento e da ação, localizando a violência em tudo aquilo que reduz um
sujeito à condição de objeto. Do ponto de vista ético, somos pessoas e não
podemos ser tratados como coisas. Os valores éticos se oferecem, portanto, como
expressão e garantia de nossa condição de sujeitos, proibindo moralmente o que
nos transforme em coisa usada e manipulada por outros.
A ética é normativa exatamente por isso, suas
normas visando impor limites e controles ao risco permanente da violência.
Os constituintes do campo ético
Para que haja conduta ética é preciso que
exista o agente consciente, isto é, aquele que conhece a diferença entre bem e
mal, certo e errado, permitido e proibido, virtude e vício. A consciência moral
não só conhece tais diferenças, mas também reconhece-se como capaz de julgar o
valor dos atos e das condutas e de agir em conformidade com os valores morais,
sendo por isso responsável por suas ações e seus sentimentos e pelas
consequências do que faz e sente. Consciência e responsabilidade são condições
indispensáveis da vida ética.
A consciência moral manifesta-se, antes de
tudo, na capacidade para deliberar diante de alternativas possíveis, decidindo
e escolhendo uma delas antes de lançar-se na ação. Tem a capacidade para
avaliar e pesar as motivações pessoais, as exigências feitas pela situação, as
conseqüências para si e para os outros, a conformidade entre meios e fins
(empregar meios imorais para alcançar fins morais é impossível), a obrigação de
respeitar o estabelecido ou de transgredi-lo (se o estabelecido for imoral ou
injusto).
A vontade é esse poder deliberativo e
decisório do agente moral. Para que exerça tal poder sobre o sujeito moral, a
vontade deve ser livre, isto é, não pode estar submetida à vontade de um outro
nem pode estar submetida aos instintos e às paixões, mas, ao contrário, deve
ter poder sobre eles e elas. O campo ético é, assim, constituído pelos valores
e pelas obrigações que formam o conteúdo das condutas morais, isto é, as
virtudes. Estas são realizadas pelo sujeito moral , principal constituinte da
existência ética.
O sujeito ético ou moral, isto é, a pessoa, só
pode existir se preencher as seguintes condições:
? ser consciente de si e dos outros, isto é,
ser capaz de reflexão e de reconhecer a existência dos outros como sujeitos
éticos iguais a ele;
? ser dotado de vontade, isto é, de capacidade
para controlar e orientar desejos, impulsos, tendências, sentimentos (para que
estejam em conformidade com a consciência) e de capacidade para deliberar e
decidir entre várias alternativas possíveis;
? ser responsável, isto é, reconhecer-se como
autor da ação, avaliar os efeitos e conseqüências dela sobre si e sobre os
outros, assumi-la bem como às suas conseqüências, respondendo por elas;
? ser livre, isto é, ser capaz de oferecer-se
como causa interna de seus sentimentos, atitudes e ações, por não estar
submetido a poderes externos que o forcem e o constranjam a sentir, a querer e
a fazer alguma coisa. A liberdade não é tanto o poder para escolher entre
vários possíveis, mas o poder para autodeterminar-se, dando a si mesmo as
regras de conduta.
O campo ético é, portanto, constituído por
dois pólos internamente relacionados: o agente ou sujeito moral e os valores
morais ou virtudes éticas.
Do ponto de vista do agente ou sujeito moral,
a ética faz uma exigência essencial, qual seja, a diferença entre passividade e
atividade. Passivo é aquele que se deixa governar e arrastar por seus impulsos,
inclinações e paixões, pelas circunstâncias, pela boa ou má sorte, pela opinião
alheia, pelo medo dos outros, pela vontade de um outro, não exercendo sua
própria consciência, vontade, liberdade e responsabilidade.
Ao contrário, é ativo ou virtuoso aquele que
controla interiormente seus impulsos, suas inclinações e suas paixões, discute
consigo mesmo e com os outros o sentido dos valores e dos fins estabelecidos,
indaga se devem e como devem ser respeitados ou transgredidos por outros
valores e fins superiores aos existentes, avalia sua capacidade para dar a si
mesmo as regras de conduta, consulta sua razão e sua vontade antes de agir, tem
consideração pelos outros sem subordinar-se nem submeter-se cegamente a eles,
responde pelo que faz, julga suas próprias intenções e recusa a violência
contra si e contra os outros. Numa palavra, é autônomo.
Do ponto de vista dos valores, a ética exprime
a maneira como a cultura e a sociedade definem para si mesmas o que julgam ser
a violência e o crime, o mal e o vício e, como contrapartida, o que consideram
ser o bem e a virtude. Por realizar-se como relação intersubjetiva e social, a
ética não é alheia ou indiferente às condições históricas e políticas,
econômicas e culturais da ação moral.
Conseqüentemente, embora toda ética seja
universal do ponto de vista da sociedade que a institui (universal porque seus
valores são obrigatórios para todos os seus membros), está em relação com o
tempo e a História, transformando-se para responder a exigências novas da
sociedade e da Cultura, pois somos seres históricos e culturais e nossa ação se
desenrola no tempo.
Além do sujeito ou pessoa moral e dos valores
ou fins morais, o campo ético é ainda constituído por um outro elemento: os
meios para que o sujeito realize os fins.
Costuma-se dizer que os fins justificam os
meios, de modo que, para alcançar um fim legítimo, todos os meios disponíveis
são válidos. No caso da ética, porém, essa afirmação deixa de ser óbvia.
Suponhamos uma sociedade que considere um
valor e um fim moral a lealdade entre seus membros, baseada na confiança
recíproca. Isso significa que a mentira, a inveja, a adulação, a má-fé, a
crueldade e o medo deverão estar excluídos da vida moral e ações que os
empreguem como meios para alcançar o fim serão imorais.
No entanto, poderia acontecer que para forçar
alguém à lealdade seria preciso fazê-lo sentir medo da punição pela
deslealdade, ou seria preciso mentir-lhe para que não perdesse a confiança em
certas pessoas e continuasse leal a elas. Nesses casos, o fim – a lealdade –
não justificaria os meios – medo e mentira? A resposta ética é: não. Por quê?
Porque esses meios desrespeitam a consciência e a liberdade da pessoa moral,
que agiria por coação externa e não por reconhecimento interior e verdadeiro do
fim ético.
No caso da ética, portanto, nem todos os meios
são justificáveis, mas apenas aqueles que estão de acordo com os fins da
própria ação. Em outras palavras, fins éticos exigem meios éticos.
A relação entre meios e fins pressupõe que a
pessoa moral não existe como um fato dado, mas é instaurada pela vida
intersubjetiva e social, precisando ser educada para os valores morais e para
as virtudes.
Poderíamos indagar se a educação ética não
seria uma violência. Em primeiro lugar, porque se tal educação visa a
transformar-nos de passivos em ativos, poderíamos perguntar se nossa natureza
não seria essencialmente passional e, portanto: forçar-nos à racionalidade
ativa não seria um ato de violência contra a nossa natureza espontânea? Em
segundo lugar, porque se a tal educação visa a colocar-nos em harmonia e em
acordo com os valores de nossa sociedade, poderíamos indagar se isso não nos
faria submetidos a um poder externo à nossa consciência, o poder da moral
social. Para responder a essas questões precisamos examinar o desenvolvimento
das idéias éticas na Filosofia.
A filosofia moral
Ética ou
filosofia moral
Toda cultura e cada sociedade institui
uma moral, isto é, valores concernentes ao bem e ao mal, ao permitido e ao
proibido, e à conduta correta, válidos para todos os seus membros. Culturas e
sociedades fortemente hierarquizadas e com diferenças muito profundas de castas
ou de classes podem até mesmo possuir várias morais, cada uma delas referida
aos valores de uma casta ou de uma classe social.
No entanto, a simples existência da
moral não significa a presença explícita de uma ética, entendida como filosofia
moral, isto é, uma reflexão que discuta, problematize e interprete o
significado dos valores morais. Podemos dizer, a partir dos textos de Platão e
de Aristóteles, que, no Ocidente, a ética ou filosofia moral inicia-se com
Sócrates.
Percorrendo praças e ruas de Atenas –
contam Platão e Aristóteles -, Sócrates perguntava aos atenienses, fossem
jovens ou velhos, o que eram os valores nos quais acreditavam e que respeitavam
ao agir.
Que perguntas Sócrates lhes fazia?
Indagava: O que é a coragem? O que é a justiça? O que é a piedade? O que é a
amizade? A elas, os atenienses respondiam dizendo serem virtudes. Sócrates
voltava a indagar: O que é a virtude?
Retrucavam os atenienses: É agir em
conformidade com o bem. E Sócrates questionava: Que é o bem?
As perguntas socráticas terminavam
sempre por revelar que os atenienses respondiam sem pensar no que diziam.
Repetiam o que lhes fora ensinado desde a infância. Como cada um havia
interpretado à sua maneira o que aprendera, era comum, no diálogo com o
filósofo, uma pergunta receber respostas diferentes e contraditórias. Após um
certo tempo de conversa com Sócrates, um ateniense via-se diante de duas
alternativas: ou zangar-se e ir embora irritado, ou reconhecer que não sabia o
que imaginava saber, dispondo-se a começar, na companhia socrática, a busca
filosófica da virtude e do bem.
Por que os atenienses sentiam-se
embaraçados (e mesmo irritados) com as perguntas socráticas? Por dois motivos
principais: em primeiro lugar, por perceberem que confundiam valores morais com
os fatos constatáveis em sua vida cotidiana (diziam, por exemplo, “Coragem é o
que fez fulano na guerra contra os persas ”); em segundo lugar, porque,
inversamente, tomavam os fatos da vida cotidiana como se fossem valores morais
evidentes (diziam, por exemplo, “É certo fazer tal ação, porque meus
antepassados a fizeram e meus parentes a fazem”). Em resumo, confundiam fatos e
valores, pois ignoravam as causas ou razões por que valorizavam certas coisas,
certas pessoas ou certas ações e desprezavam outras, embaraçando-se ou
irritando-se quando Sócrates lhes mostrava que estavam confusos. Tais
confusões, porém, não eram (e não são) inexplicáveis.
Nossos sentimentos, nossas condutas,
nossas ações e nossos comportamentos são modelados pelas condições em que
vivemos (família, classe e grupo social, escola, religião, trabalho,
circunstâncias políticas, etc.). Somos formados pelos costumes de nossa
sociedade, que nos educa para respeitarmos e reproduzirmos os valores propostos
por ela como bons e, portanto, como obrigações e deveres. Dessa maneira,
valores e maneiras parecem existir por si e em si mesmos, parecem ser naturais
e intemporais, fatos ou dados com os quais nos relacionamos desde o nosso
nascimento: somos recompensados quando os seguimos, punidos quando os
transgredimos.
Sócrates embaraçava os atenienses
porque os forçava a indagar qual a origem e a essência das virtudes (valores e
obrigações) que julgavam praticar ao seguir os costumes de Atenas. Como e por
que sabiam que uma conduta era boa ou má, virtuosa ou viciosa? Por que, por
exemplo, a coragem era considerada virtude e a covardia, vício? Por que
valorizavam positivamente a justiça e desvalorizavam a injustiça, combatendo-a?
Numa palavra: o que eram e o que valiam realmente os costumes que lhes haviam
sido ensinados?
Os costumes, porque são anteriores ao
nosso nascimento e formam o tecido da sociedade em que vivemos, são considerados
inquestionáveis e quase sagrados (as religiões tendem a mostrá-los como tendo
sido ordenados pelos deuses, na origem dos tempos). Ora, a palavra costume se
diz, em grego, ethos – donde, ética – e, em latim, mores – donde, moral. Em
outras palavras, ética e moral referem-se ao conjunto de costumes tradicionais
de uma sociedade e que, como tais, são considerados valores e obrigações para a
conduta de seus membros. Sócrates indagava o que eram, de onde vinham, o que
valiam tais costumes.
No entanto, a língua grega possui uma
outra palavra que, infelizmente, precisa ser escrita, em português, com as
mesmas letras que a palavra que significa costume: ethos. Em grego, existem
duas vogais para pronunciar e grafar nossa vogal e: uma vogal breve, chamada
epsilon, e uma vogal longa, chamada eta. Ethos, escrita com a vogal longa
(ethos com eta), significa costume; porém, escrita com a vogal breve (ethos com
epsilon), significa caráter, índole natural, temperamento, conjunto das
disposições físicas e psíquicas de uma pessoa. Nesse segundo sentido, ethos se
refere às características pessoais de cada um que determinam quais virtudes e
quais vícios cada um é capaz de praticar. Refere-se, portanto, ao senso moral e
à consciência ética individuais.
Dirigindo-se aos atenienses, Sócrates
lhes perguntava qual o sentido dos costumes estabelecidos
(ethos com eta: os valores éticos ou morais da coletividade, transmitidos de
geração a geração), mas também indagava quais as disposições de caráter (ethos com epsilon: características
pessoais, sentimentos, atitudes, condutas individuais) que levavam alguém a
respeitar ou a transgredir os valores da cidade, e por quê.
Ao indagar o que são a virtude e o bem, Sócrates
realiza na verdade duas interrogações. Por um lado, interroga a sociedade para
saber se o que ela costuma (ethos com eta) considerar virtuoso e bom
corresponde efetivamente à virtude e ao bem; e, por outro lado, interroga os
indivíduos para saber se, ao agir, possuem efetivamente consciência do
significado e da finalidade de suas ações, se seu caráter ou sua índole (ethos
com epsilon) são realmente virtuosos e bons. A indagação ética socrática
dirige-se, portanto, à sociedade e ao indivíduo.
As questões socráticas inauguram a
ética ou filosofia moral, porque definem o campo no qual valores e obrigações
morais podem ser estabelecidos, ao encontrar seu ponto de partida: a consciência do agente moral . É sujeito ético moral somente
aquele que sabe o que faz, conhece as causas e os fins de sua ação, o
significado de suas intenções e de suas atitudes e a essência dos valores
morais. Sócrates afirma que apenas o ignorante é vicioso ou incapaz de virtude,
pois quem sabe o que é o bem não poderá deixar de agir virtuosamente.
Se devemos a Sócrates o início da
filosofia moral, devemos a Aristóteles a distinção entre saber teorético e
saber prático. O saber teorético é o conhecimento de seres e fatos que existem
e agem independentemente de nós e sem nossa intervenção ou interferência. Temos
conhecimento teorético da Natureza. O saber prático é o conhecimento daquilo
que só existe como conseqüência de nossa ação e, portanto, depende de nós. A
ética é um saber prático. O saber prático, por seu turno, distingue-se de
acordo com a prática, considerada como práxis ou como técnica.
A ética refere-se à práxis.
Na práxis, o agente, a ação e a
finalidade do agir são inseparáveis. Assim, por exemplo, dizer a verdade é uma
virtude do agente, inseparável de sua fala verdadeira e de sua finalidade, que
é proferir uma verdade. Na práxis ética somos aquilo que fazemos e o que
fazemos é a finalidade boa ou virtuosa. Ao contrário, na técnica, diz
Aristóteles, o agente, a ação e a finalidade da ação estão separados, sendo
independentes uns dos outros. Um carpinteiro, por exemplo, ao fazer uma mesa,
realiza uma ação técnica, mas ele próprio não é essa ação nem é a mesa
produzida pela ação. A técnica tem como finalidade a fabricação de alguma coisa
diferente do agente e da ação fabricadora. Dessa maneira, Aristóteles distingue
a ética e a técnica como práticas que diferem pelo modo de relação do agente
com a ação e com a finalidade da ação.
Também devemos a Aristóteles a
definição do campo das ações éticas. Estas não só são definidas pela virtude,
pelo bem e pela obrigação, mas também pertencem àquela esfera da realidade na qual
cabem a deliberação e
a decisão ou escolha. Em outras palavras,
quando o curso de uma realidade segue leis necessárias e universais, não há
como nem por que deliberar e escolher, pois as coisas acontecerão
necessariamente tais como as leis que as regem determinam que devam acontecer.
Não deliberamos sobre as estações do
ano, o movimento dos astros, a forma dos minerais ou dos vegetais. Não
deliberamos e nem decidimos sobre aquilo que é regido pela Natureza, isto é,
pela necessidade. Mas deliberamos e decidimos sobre tudo aquilo que, para ser e
acontecer, depende de nossa vontade e de nossa ação. Não deliberamos e não
decidimos sobre o necessário, pois o necessário é o que é e o que será sempre,
independentemente de nós. Deliberamos e decidimos sobre o possível, isto é, sobre aquilo
que pode ser ou deixar de ser, porque para ser e acontecer depende de nós, de
nossa vontade e de nossa ação. Aristóteles acrescenta à consciência moral,
trazida por Sócrates, a vontade
guiada pela razão como o outro elemento fundamental da vida ética.
A importância dada por Aristóteles à
vontade racional, à deliberação e à escolha o levou a considerar uma virtude
como condição de todas as outras e presente em todas elas: a prudência ou sabedoria prática. O
prudente é aquele que, em todas as situações, é capaz de julgar e avaliar qual
a atitude e qual a ação que melhor realizarão a finalidade ética, ou seja,
entre as várias escolhas possíveis, qual a mais adequada para que o agente seja
virtuoso e realize o que é bom para si e para os outros.
Se examinarmos o pensamento filosófico
dos antigos, veremos que nele a ética afirma três grandes princípios da vida
moral:
1. por natureza, os seres humanos
aspiram ao bem e à felicidade, que só podem ser alcançados pela conduta
virtuosa;
2. a virtude é uma força interior do
caráter, que consiste na consciência do bem e na conduta definida pela vontade
guiada pela razão, pois cabe a esta última o controle sobre instintos e
impulsos irracionais descontrolados que existem na natureza de todo ser humano;
3. a conduta ética é aquela na
qual o agente sabe o que está e o que não está em seu poder realizar,
referindo-se, portanto, ao que é possível e desejável para um ser humano. Saber
o que está em nosso poder significa, principalmente, não se deixar arrastar
pelas circunstâncias, nem pelos instintos, nem por uma vontade alheia, mas
afirmar nossa independência e nossa capacidade de autodeterminação.
O sujeito ético ou moral não se submete
aos acasos da sorte, à vontade e aos desejos de um outro, à tirania das
paixões, mas obedece apenas à sua consciência – que conhece o bem e as virtudes
– e à sua vontade racional – que conhece os Convite à Filosofia meios adequados
para chegar aos fins morais. A busca do bem e da felicidade são a essência da
vida ética.
Os filósofos antigos (gregos e romanos)
consideravam a vida ética transcorrendo como um embate contínuo entre nossos
apetites e desejos – as paixões – e nossa razão. Por natureza, somos passionais
e a tarefa primeira da ética é a educação de nosso caráter ou de nossa
natureza, para seguirmos a orientação da razão. A vontade possuía um lugar
fundamental nessa educação, pois era ela que deveria ser fortalecida para
permitir que a razão controlasse e dominasse as paixões.
O passional é aquele que se deixa
arrastar por tudo quanto satisfaça imediatamente seus apetites e desejos,
tornando-se escravo deles. Desconhece a moderação, busca tudo imoderadamente,
acabando vítima de si mesmo.
Podemos resumir a ética dos antigos em
três aspectos principais:
1. o racionalismo: a vida virtuosa é agir em conformidade com a
razão, que conhece o bem, o deseja e guia nossa vontade até ele;
2. o naturalismo: a vida virtuosa é agir em conformidade com a
Natureza (o cosmos) e com nossa natureza (nosso ethos), que é uma parte do todo
natural;
3. a inseparabilidade entre ética e política: isto é, entre a
conduta do indivíduo e os valores da sociedade, pois somente na existência
compartilhada com outros encontramos liberdade, justiça e felicidade.
A ética, portanto, era concebida como
educação do caráter do sujeito moral para dominar racionalmente impulsos,
apetites e desejos, para orientar a vontade rumo ao bem e à felicidade, e para
formá-lo como membro da coletividade sociopolítica. Sua finalidade era a
harmonia entre o caráter do sujeito virtuoso e os valores coletivos, que também
deveriam ser virtuosos.
O
cristianismo: interioridade e dever
Diferentemente de outras religiões da
Antiguidade, que eram nacionais e políticas, o cristianismo nasce como religião
de indivíduos que não se definem por seu pertencimento a uma nação ou a um
Estado, mas por sua fé num mesmo e único Deus. Em outras palavras, enquanto nas
demais religiões antigas a divindade se relacionava com a comunidade social e
politicamente organizada, o Deus cristão relaciona-se diretamente com os
indivíduos que nele creem. Isso significa, antes de qualquer coisa, que a vida
ética do cristão não será definida por sua relação com a sociedade, mas por sua
relação espiritual e interior com Deus. Dessa maneira, o cristianismo introduz
duas diferenças primordiais na antiga concepção ética:
? em primeiro lugar, a ideia de que a
virtude se define por nossa relação com Deus e não com a cidade (a polis) nem
com os outros. Nossa relação com os outros depende da qualidade de nossa
relação com Deus, único mediador entre cada indivíduo e os demais. Por esse
motivo, as duas virtudes cristãs primeiras e condições de todas as outras são a
fé (qualidade da relação de nossa alma com Deus) e a caridade (o amor aos
outros e a responsabilidade pela salvação dos outros, conforme exige a fé). As
duas virtudes são privadas, isto é, são relações do indivíduo com Deus e com os
outros, a partir da intimidade e da interioridade de cada um;
? em segundo lugar, a afirmação de que
somos dotados de vontade livre – ou livre-arbítrio – e que o primeiro impulso
de nossa liberdade dirige-se para o mal e para o pecado, isto é, para a
transgressão das leis divinas. Somos seres fracos, pecadores, divididos entre o
bem (obediência a Deus) e o mal (submissão à tentação demoníaca). Em outras
palavras, enquanto para os filósofos antigos a vontade era uma faculdade
racional capaz de dominar e controlar a desmesura passional de nossos apetites
e desejos, havendo, portanto, uma força interior (a vontade consciente) que nos
tornava morais, para o cristianismo, a própria vontade está pervertida pelo
pecado e precisamos do auxílio divino para nos tornarmos morais.
Qual o auxílio divino sem o qual a vida
ética seria impossível? A lei
divina revelada, que devemos obedecer obrigatoriamente e sem exceção.
O cristianismo, portanto, passa a
considerar que o ser humano é, em si mesmo e por si mesmo, incapaz de realizar
o bem e as virtudes. Tal concepção leva a introduzir uma nova ideia na moral: a ideia do dever.
Por meio da revelação aos profetas
(Antigo Testamento) e de Jesus Cristo (Novo Testamento), Deus tornou sua
vontade e sua lei manifestas aos seres humanos, definindo eternamente o bem e o
mal, a virtude e o vício, a felicidade e a infelicidade, a salvação e o
castigo. Aos humanos, cabe reconhecer a vontade e a lei de Deus, cumprindo-as
obrigatoriamente, isto é, por atos
de dever. Estes tornam morais um sentimento, uma intenção, uma conduta
ou uma ação.
Mesmo quando, a partir do Renascimento,
a filosofia moral distancia-se dos princípios teológicos e da fundamentação
religiosa da ética, a ideia do dever permanecerá como uma das marcas principais
da concepção ética ocidental. Com isso, a filosofia moral passou a distinguir
três tipos fundamentais de conduta:
1. a conduta moral ou ética, que
se realiza de acordo com as normas e as regras impostas pelo dever;
2. a conduta imoral ou antiética, que
se realiza contrariando as normas e as regras fixadas pelo dever;
3. a conduta indiferente à moral,
quando agimos em situações que não são definidas pelo bem e pelo mal, e nas
quais não se impõem as normas e as regras do dever.
Juntamente com a ideia do dever, a
moral cristã introduziu uma outra, também decisiva na constituição da
moralidade ocidental: a ideia de intenção.
Até o cristianismo, a filosofia moral
localizava a conduta ética nas ações e
nas atitudes visíveis do
agente moral, ainda que tivessem como pressuposto algo que se realizava no
interior do agente, em sua vontade racional ou consciente. Eram as condutas
visíveis que eram julgadas virtuosas ou viciosas. O cristianismo, porém, é uma
religião da interioridade, afirmando que a vontade e a lei divinas não estão
escritas nas pedras nem nos pergaminhos, mas inscritas no coração dos seres
humanos. A primeira relação ética, portanto, se estabelece entre o coração do
indivíduo e Deus, entre a alma invisível e a divindade. Como conseqüência,
passou-se a considerar como submetido ao julgamento ético tudo quanto,
invisível aos olhos humanos, é visível ao espírito de Deus, portanto, tudo
quanto acontece em nosso interior. O dever não se refere apenas às ações
visíveis, mas também às intenções
invisíveis, que passam a ser julgadas eticamente. Eis por que um
cristão, quando se confessa, obriga-se a confessar pecados cometidos por atos,
palavras e intenções. Sua alma, invisível, tem o testemunho do olhar de Deus,
que a julga.
Natureza
humana e dever
O cristianismo introduz a ideia do
dever para resolver um problema ético, qual seja, oferecer um caminho seguro
para nossa vontade, que, sendo livre, mas fraca, sente-se dividida entre o bem
e o mal. No entanto, essa ideia cria um problema novo. Se o sujeito moral é aquele que encontra em sua consciência (vontade, razão, coração) as normas da
conduta virtuosa, submetendo-se apenas ao bem, jamais submetendo-se a poderes
externos à consciência, como falar em comportamento ético por dever? Este não seria o poder
externo de uma vontade externa (Deus), que nos domina e nos impõe suas leis,
forçando-nos a agir em conformidade com regras vindas de fora de nossa
consciência?
Em outras palavras, se a ética exige um
sujeito autônomo, a ideia de dever não introduziria a heteronomia, isto é, o
domínio de nossa vontade e de nossa consciência por um poder estranho a nós?
Um dos filósofos que procuraram
resolver essa dificuldade foi Rousseau, no século XVIII. Para ele, a
consciência moral e o sentimento do dever são inatos, são “a voz da Natureza” e
o “dedo de Deus” em nossos corações. Nascemos puros e bons , dotados de
generosidade e de benevolência para com os outros. Se o dever parece ser uma
imposição e uma obrigação externa, imposta por Deus aos humanos, é porque nossa
bondade natural foi pervertida pela sociedade, quando esta criou a propriedade
privada e os interesses privados, tornando-nos egoístas, mentirosos e
destrutivos.
O dever simplesmente nos força a
recordar nossa natureza originária e, portanto, só em aparência é imposição
exterior. Obedecendo ao dever (à lei divina inscrita em nosso coração), estamos
obedecendo a nós mesmos, aos nossos sentimentos e às nossas emoções e não à
nossa razão, pois esta é responsável pela sociedade egoísta e perversa.
Uma outra resposta, também no final do
século XVIII, foi trazida por Kant. Opondo-se à “moral do coração” de Rousseau,
Kant volta a afirmar o papel da razão na ética. Não existe bondade natural. Por
natureza, diz Kant, somos egoístas, ambiciosos, destrutivos, agressivos,
cruéis, ávidos de prazeres que nunca nos saciam e pelos quais matamos,
mentimos, roubamos. É justamente por isso que precisamos do dever para nos
tornarmos seres morais.
A exposição
kantiana parte de duas distinções:
1. a distinção entre razão pura
teórica ou especulativa e razão pura prática;
2. a distinção entre ação por
causalidade ou necessidade e ação por finalidade ou liberdade.
Razão pura teórica e prática são
universais, isto é, as mesmas para todos os homens em todos os tempos e lugares
– podem variar no tempo e no espaço os conteúdos dos conhecimentos e das ações, mas as formas da atividade racional de
conhecimento e da ação são universais. Em outras palavras, o sujeito, em ambas,
é sujeito transcendental, como
vimos na teoria do conhecimento. A diferença entre razão teórica e prática
encontra-se em seus objetos. A razão teórica ou especulativa tem como matéria
ou conteúdo a realidade exterior a nós, um sistema de objetos que opera segundo
leis necessárias de causa e efeito, independentes de nossa intervenção; a razão
prática não contempla uma causalidade externa necessária, mas cria sua própria
realidade, na qual se exerce. Essa diferença decorre da distinção entre
necessidade e finalidade/liberdade.
A Natureza é o reino da necessidade,
isto é, de acontecimentos regidos por sequências necessárias de causa e efeito
– é o reino da física, da astronomia, da química, da psicologia. Diferentemente
do reino da Natureza, há o reino humano da práxis, no qual as ações são
realizadas racionalmente não por necessidade causal, mas por finalidade e
liberdade.
A razão prática é a liberdade como
instauração de normas e fins éticos. Se a razão prática tem o poder para criar
normas e fins morais, tem também o poder para impô-los a si mesma. Essa
imposição que a razão prática faz a si mesma daquilo que ela própria criou é o
dever. Este, portanto, longe de ser uma imposição externa feita à nossa vontade
e à nossa consciência, é a expressão da lei moral em nós, manifestação mais
alta da humanidade em nós. Obedecê-lo é obedecer a si mesmo. Por
dever, damos a nós mesmos os valores, os fins e as leis de nossa ação moral e
por isso somos autônomos.
Resta, porém, uma questão: se somos
racionais e livres, por que valores, fins e leis morais não são espontâneos em
nós, mas precisam assumir a forma do dever?
Responde Kant: porque não somos seres
morais apenas. Também somos seres naturais, submetidos à causalidade necessária
da Natureza. Nosso corpo e nossa psique são feitos de apetites, impulsos,
desejos e paixões. Nossos sentimentos, nossas emoções e nossos comportamentos
são a parte da Natureza em nós, exercendo domínio sobre nós, submetendo-se à causalidade
natural inexorável. Quem se submete a eles não pode possuir a autonomia ética.
A Natureza nos impele a agir por interesse. Este é a forma natural do
egoísmo que nos leva a usar coisas e pessoas como meios e instrumentos para o
que desejamos. Além disso, o interesse nos faz viver na ilusão de que somos
livres e racionais por realizarmos ações que julgamos terem sido decididas
livremente por nós, quando, na verdade, são um impulso cego determinado pela
causalidade natural. Agir por interesse é agir determinado por motivações
físicas, psíquicas, vitais, à maneira dos animais.
Visto que apetites, impulsos, desejos,
tendências, comportamentos naturais costumam ser muito mais fortes do que a
razão, a razão prática e a verdadeira liberdade precisam dobrar nossa parte
natural e impor-nos nosso ser moral. Elas o fazem obrigando-nos a passar das
motivações do interesse para o dever. Para sermos livres, precisamos ser
obrigados pelo dever de sermos livres.
Assim, à pergunta que fizemos no
capítulo anterior sobre o perigo da educação ética ser violência contra nossa
natureza espontaneamente passional, Kant responderá que, pelo contrário, a
violência estará em não compreendermos nossa destinação racional e em
confundirmos nossa liberdade com a satisfação irracional de todos os nossos
apetites e impulsos. O dever revela nossa verdadeira natureza.
O dever, afirma Kant, não se apresenta
através de um conjunto de conteúdos fixos, que definiriam a essência de cada
virtude e diriam que atos deveriam ser praticados e evitados em cada
circunstância de nossas vidas. O dever não é um catálogo de virtudes nem uma
lista de “faça isto” e “não faça aquilo”. O dever é uma forma que deve valer
para toda e qualquer ação moral.
Essa forma não é indicativa, mas
imperativa. O imperativo não admite hipóteses (“se… então ”) nem condições que
o fariam valer em certas situações e não valer em outras, mas vale
incondicionalmente e sem exceções para todas as circunstâncias de todas as
ações morais. Por isso, o dever é um imperativo categórico. Ordena
incondicionalmente. Não é uma motivação psicológica, mas a lei moral interior.
O imperativo categórico exprime-se numa
fórmula geral: Age em conformidade apenas com a máxima que possas querer que se
torne uma lei universal . Em outras palavras, o ato moral é aquele que se
realiza como acordo entre a vontade e as leis universais que ela dá a si mesma.
Essa fórmula permite a Kant deduzir as
três máximas morais que exprimem a incondicionalidade dos atos realizados por
dever. São elas:
1. Age como se a máxima de tua ação
devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da Natureza;
2. Age de tal maneira que trates a
humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre como um fim e
nunca como um meio;
3. Age como se a máxima de tua ação
devesse servir de lei universal para todos os seres racionais.
A primeira máxima afirma a
universalidade da conduta ética, isto é, aquilo que todo e qualquer ser humano
racional deve fazer como se fosse uma lei inquestionável, válida para todos e
em todo tempo e lugar. A ação por dever é uma lei moral para o agente.
A segunda máxima afirma a dignidade dos
seres humanos como pessoas e, portanto, a exigência de que sejam tratados como
fim da ação e jamais como meio ou como instrumento para nossos interesses.
A terceira máxima afirma que a vontade
que age por dever institui um reino humano de seres morais porque racionais e,
portanto, dotados de uma vontade legisladora livre ou autônoma. A terceira
máxima exprime a diferença ou separação entre o reino natural das causas e o
reino humano dos fins.
O imperativo categórico não enuncia o
conteúdo particular de uma ação, mas a forma geral das ações morais. As máximas
deixam clara a interiorização do dever, pois este nasce da razão e da vontade
legisladora universal do agente moral. O acordo entre vontade e dever é o que
Kant designa como vontade boa que
quer o bem.
O motivo moral da vontade boa é agir por dever. O móvel moral da vontade boa é o respeito pelo dever, produzido em
nós pela razão. Obediência à lei moral, respeito pelo dever e pelos outros
constituem a bondade da vontade ética.
O imperativo categórico não nos diz
para sermos honestos, oferecendo-nos a essência da honestidade; nem para sermos
justos, verazes, generosos ou corajosos a partir da definição da essência da
justiça, da verdade, da generosidade ou da coragem. Não nos diz para
praticarmos esta ou aquela ação determinada, mas nos diz para sermos éticos
cumprindo o dever (as três máximas morais). É este que determina por que uma
ação moral deverá ser sempre honesta, justa, veraz, generosa ou corajosa. Ao
agir, devemos indagar se nossa ação está em conformidade com os fins morais,
isto é, com as máximas do dever.
Por que, por exemplo, mentir é imoral?
Porque o mentiroso transgride as três máximas morais. Ao mentir, não respeita
em sua pessoa e na do outro a humanidade (consciência, racionalidade e
liberdade), pratica uma violência escondendo de um outro ser humano uma
informação verdadeira e, por meio do engano, usa a boa-fé do outro. Também não
respeita a segunda máxima, pois se a mentira pudesse universalizar-se, o gênero
humano deveria abdicar da razão e do conhecimento, da reflexão e da crítica, da
capacidade para deliberar e escolher, vivendo na mais completa ignorância, no
erro e na ilusão.
Por que um político corrupto é imoral?
Porque transgride as três máximas. Por que o homicídio é imoral? Porque
transgride as três máximas.
As respostas de Rousseau e Kant, embora
diferentes, procuram resolver a mesma dificuldade, qual seja, explicar por que
o dever e a liberdade da consciência moral são inseparáveis e compatíveis. A
solução de ambos consiste em colocar o dever em nosso interior, desfazendo a
impressão de que ele nos seria imposto de fora por uma vontade estranha à
nossa.
Cultura e
dever
Rousseau e Kant procuraram conciliar o
dever e a ideia de uma natureza humana que precisa ser obrigada à moral. No
entanto, ao enfatizarem a questão da natureza (Natureza e natureza humana), tenderam
a perder de vista o problema da relação entre o dever e a Cultura, pois
poderíamos repetir, agora, a pergunta que fizemos antes: Se a ética exige um
sujeito consciente e autônomo, como explicar que a moral exija o cumprimento do
dever, definido como um conjunto de valores, normas, fins e leis estabelecidos
pela Cultura? Não estaríamos de volta ao problema da exterioridade entre o
sujeito e o dever? A resposta a essa questão foi trazida, no século XIX, por
Hegel.
Hegel critica Rousseau e Kant por dois
motivos. Em primeiro lugar, por terem dado atenção à relação sujeito
humano-Natureza (a relação entre razão e paixões), esquecendo a relação sujeito
humano-Cultura e História. Em segundo lugar, por terem admitido a relação entre
a ética e a sociabilidade dos seres humanos, mas tratando-a a partir de laços
muito frágeis, isto é, como relações pessoais diretas entre indivíduos isolados
ou independentes, quando deveriam tela tomado a partir dos laços fortes das
relações sociais, fixadas pelas instituições sociais (família, sociedade civil,
Estado). As relações pessoais entre indivíduos são determinadas e mediadas por
suas relações sociais. São estas últimas que determinam a vida ética ou moral
dos indivíduos.
Somos, diz Hegel, seres históricos e
culturais. Isso significa que, além de nossa vontade individual subjetiva (que
Rousseau chamou de coração e Kant de razão prática), existe uma outra vontade,
muito mais poderosa, que determina a nossa: a vontade objetiva, inscrita nas
instituições ou na Cultura.
A vontade objetiva – impessoal,
coletiva, social, pública – cria as instituições e a moralidade como sistema
regulador da vida coletiva por meio de mores, isto é, dos costumes e dos
valores de uma sociedade, numa época determinada. A moralidade é uma totalidade
formada pelas instituições (família, religião, artes, técnicas, ciências,
relações de trabalho, organização política, etc.), que obedecem, todas, aos
mesmos valores e aos mesmos costumes, educando os indivíduos para
interiorizarem a vontade objetiva de sua sociedade e de sua cultura.
A vida ética é o acordo e a harmonia
entre a vontade subjetiva individual e a vontade objetiva cultural . Realiza-se
plenamente quando interiorizamos nossa Cultura, de tal maneira que praticamos
espontânea e livremente seus costumes e valores, sem neles pensarmos, sem os
discutirmos, sem deles duvidarmos, porque são como nossa própria vontade os
deseja. O que é, então, o dever? O acordo pleno entre nossa vontade subjetiva
individual e a totalidade ética ou moralidade.
Como conseqüência, o imperativo
categórico não poderá ser uma forma universal desprovida de conteúdo
determinado, como afirmara Kant, mas terá, em cada época, em cada sociedade e
para cada Cultura, conteúdos determinados, válidos apenas para aquela formação
histórica e cultural. Assim cada sociedade, em cada época de sua História,
define os valores positivos e negativos, os atos permitidos e os proibidos para
seus membros, o conteúdo dos deveres e do imperativo moral. Ser ético e livre
será, portanto, pôr-se de acordo com as regras morais de nossa sociedade,
interiorizando-as.
Hegel afirma que podemos perceber ou
reconhecer o momento em que uma sociedade e uma Cultura entram em declínio,
perdem força para conservar-se e abrem-se às crises internas que anunciam seu
término e sua passagem a uma outra formação sociocultural. Esse momento é
aquele no qual os membros daquela sociedade e daquela Cultura contestam os
valores vigentes, sentem-se oprimidos e esmagados por eles, agem de modo a
transgredi-los. É o momento no qual o antigo acordo entre as vontades
subjetivas e a vontade objetiva rompem-se inexoravelmente, anunciando um novo
período histórico.
Numa perspectiva algo semelhante à
hegeliana encontra-se, no século XX, o filósofo francês Henri Bergson. Como
Hegel, Bergson procura compreender a relação dever-Cultura ou dever-História e,
portanto, as mudanças nas formas e no conteúdo da moralidade. Distingue ele
duas morais: a moral fechada e a aberta.
A moral fechada é o acordo entre os
valores e os costumes de uma sociedade e os sentimentos e as ações dos
indivíduos que nela vivem. É a moral repetitiva, habitual, respeitada quase
automaticamente por nós. Em contrapartida, a moral aberta é uma criação de
novos valores e de novas condutas que rompem a moral fechada, instaurando uma
ética nova. Os criadores éticos são, para Bergson, indivíduos excepcionais –
heróis, santos, profetas, artistas -, que colocam suas vidas a serviço de um
tempo novo, inaugurado por eles, graças a ações exemplares, que contrariam a moral
fechada vigente.
Hegel diria que a moral aberta
bergsoniana só pode acontecer quando a moralidade vigente está em crise,
prestes a terminar, porque um novo período histórico-cultural está para
começar. A moral fechada quando sentida como repressora e opressora, e a
totalidade ética, quando percebida como contrária à subjetividade individual,
indicam aquele momento em que as normas e os valores morais são experimentados
como violência e não mais como realização ética.
História e
virtudes
Viemos observando que os valores morais
modificam-se na História porque seu conteúdo é determinado por condições
históricas. Podemos comprovar a determinação histórica do conteúdo dos valores,
examinando as virtudes definidas em diferentes épocas.
Se tomarmos a Ética a Nicômaco, de
Aristóteles, nela encontraremos a síntese das virtudes que constituíam a arete
(a virtude ou excelência ética) e a moralidade grega durante o tempo em que a
polis autônoma foi a referência social da Grécia.
Aristóteles distingue vícios e virtudes
pelo critério do excesso, da falta e da moderação: um vício é um sentimento ou
uma conduta excessivos, ou, ao contrário, deficientes; uma virtude, um
sentimento ou uma conduta moderados.
Resumidamente, eis o quadro
aristotélico:
Virtude
|
Vício por excesso
|
Vício por deficiência
|
Coragem
|
Temeridade
|
Covardia
|
Temperança
|
Libertinagem
|
Insensibilidade
|
Prodigalidade
|
Esbanjamento
|
Avareza
|
Magnificência
|
Vulgaridade
|
Vileza
|
Respeito próprio
|
Vaidade
|
Modéstia
|
Prudência
|
Ambição
|
Moleza
|
Gentileza
|
Irascibilidade
|
Indiferença
|
Veracidade
|
Orgulho
|
Descrédito próprio
|
Agudeza de espírito
|
Zombaria
|
Rusticidade
|
Amizade
|
Condescendência
|
Enfado
|
Justa indignação
|
Inveja
|
Malevolência
|
Quando examinamos as virtudes definidas
pelo cristianismo, descobrimos que, embora as aristotélicas não sejam
afastadas, deixam de ser as mais relevantes. O quadro cristão pode ser assim
resumido:
? Virtudes
teologais: fé, esperança, caridade;
? Virtudes
cardeais: coragem, justiça, temperança, prudência;
? Pecados
capitais: gula, avareza, preguiça, luxúria, cólera, inveja e orgulho.
? Virtudes
morais: sobriedade, prodigalidade, trabalho, castidade, mansidão,
generosidade, modéstia.
Observamos o aparecimento de virtudes
novas, concernentes à relação do crente com Deus (virtudes teologais), e da
justiça como virtude particular (para Aristóteles, a justiça é o resultado da
virtude e não uma das virtudes); a amizade é substituída pela caridade
(responsabilidade pela salvação do outro); os vícios são transformados em
pecados (portanto, voltados para a relação do crente com a lei divina); e, nas
virtudes morais, encontramos um vício aristotélico – a modéstia -, além do
aparecimento de virtudes ignoradas ou desconhecidas por Aristóteles –
humildade, castidade, mansidão.
Surge também como virtude algo que,
para um grego ou um romano, jamais poderia fazer parte dos valores do homem
livre: o trabalho. O ócio, considerado pela sociedade escravista greco-romana
como condição para o exercício da política, torna-se, agora, vício da preguiça.
Lutero dirá: “Mente desocupada, oficina do diabo”.
Se, agora, tomarmos como referência um
filósofo do século XVII, Espinosa, veremos o quadro alterar-se profundamente.
Para Espinosa, somos seres naturalmente
passionais, porque sofremos a ação de causas exteriores a nós. Em outras
palavras, ser passional é ser passivo, deixando-se dominar e conduzir por
forças exteriores ao nosso corpo e à nossa alma. Ora, por natureza, vivemos
rodeados por outros seres, mais fortes do que nós, que agem sobre nós. Por
isso, as paixões não são boas nem más: são naturais. Três são as paixões
originais: alegria, tristeza e desejo. As demais derivam-se destas. Assim, da
alegria nascem o amor, a devoção, a esperança, a segurança, o contentamento, a
misericórdia, a glória; da tristeza surgem o ódio, a inveja, o orgulho, o
arrependimento, a modéstia, o medo, o desespero, o pudor; do desejo provém a
gratidão, a cólera, a crueldade, a ambição, o temor, a ousadia, a luxúria, a
avareza.
Uma paixão triste é aquela que diminui
a capacidade de ser e agir de nosso corpo e de nossa alma; ao contrário, uma
paixão alegre aumenta a capacidade de existir e agir de nosso corpo e de nossa
alma. No caso do desejo, podemos ter paixões tristes (como a crueldade, a
ambição, a avareza) ou alegres (como a gratidão e a ousadia).
Que é o vício? Submeter-se às paixões,
deixando-se governar pelas causas externas.
Que é a virtude? Ser causa interna de
nossos sentimentos, atos e pensamentos. Ou seja, passar da passividade
(submissão a causas externas) à atividade (ser causa interna). A virtude é,
pois, passar da paixão à ação, tornar-se causa ativa interna de nossa
existência, atos e pensamentos. As paixões e os desejos tristes nos enfraquecem
e nos tornam cada vez mais passivos. As paixões e os desejos alegres nos
fortalecem e nos preparam para passar da passividade à atividade.
Como sucumbimos ao vício? Deixando-nos
dominar pelas paixões tristes e pelas desejantes nascidas da tristeza. O vício
não é um mal: é fraqueza para existir, agir e pensar.
Como passamos da paixão à ação ou à
virtude? Transformando as paixões alegres e as desejantes nascidas da alegria
em atividades de que somos a causa. A virtude não é um bem: é a força para ser
e agir autonomamente.
Observamos, assim, que a ética
espinosista evita oferecer um quadro de valores ou de vícios e virtudes,
distanciando-se de Aristóteles e da moral cristã, para buscar na idéia moderna
de indivíduo livre o núcleo da ação moral. Em sua obra, Ética, Espinosa jamais
fala em pecado e em dever; fala em fraqueza e em força para ser, pensar e agir.
As virtudes aristotélicas inserem-se
numa sociedade que valorizava as relações sociopolíticas entre os seres humanos,
donde a proeminência da amizade e da justiça. As virtudes cristãs inserem-se
numa sociedade voltada para a relação dos humanos com Deus e com a lei divina.
A virtude espinosista toma a relação do indivíduo com a Natureza e a sociedade,
centrando-se nas idéias de integridade individual e de força interna para
relacionar-se livremente com ambas. Como, porém, vivemos numa cultura cristã, a
perspectiva do cristianismo, embora historicamente datada, tende a ser
dominante, ainda que se altere periodicamente para adaptar-se a novas
exigências históricas. Assim, no século XVII, Espinosa abandona as noções
cristãs de pecado e dever que, no século XVIII, reaparecem com Kant.
Razão, desejo
e vontade
A tradição filosófica que examinamos
até aqui constitui o racionalismo ético, pois atribui à razão humana o lugar
central na vida ética. Duas correntes principais formam a tradição
racionalista: aquela que identifica razão com inteligência, ou intelecto –
corrente intelectualista – e aquela que considera que, na moral, a razão
identifica-se com a vontade – corrente voluntarista.
Para a concepção intelectualista, a
vida ética ou vida virtuosa depende do conhecimento, pois é somente por
ignorância que fazemos o mal e nos deixamos arrastar por impulsos e paixões
contrários à virtude e ao bem. O ser humano, sendo essencialmente racional,
deve fazer com que sua razão ou inteligência (o intelecto) conheça os fins
morais, os meios morais e a diferença entre bem e mal, de modo a conduzir a
vontade no momento da deliberação e da decisão. A vida ética depende do
desenvolvimento da inteligência ou razão, sem a qual a vontade não poderá
atuar.
Para a concepção voluntarista, a vida
ética ou moral depende essencialmente da nossa vontade, porque dela depende
nosso agir e porque ela pode querer ou não querer o que a inteligência lhe
ordena. Se a vontade for boa, seremos virtuosos, se for má, seremos viciosos. A
vontade boa orienta nossa inteligência no momento da escolha de uma ação,
enquanto a vontade má desvia nossa razão da boa escolha, no momento de
deliberar e de agir. A vida ética depende da qualidade de nossa vontade e da
disciplina para forçá-la rumo ao bem. O dever educa a vontade para que se torne
reta e boa.
Nas duas correntes, porém, há
concordância quanto à idéia de que, por natureza, somos seres passionais,
cheios de apetites, impulsos e desejos cegos, desenfreados e desmedidos,
cabendo à razão (seja como inteligência, no intelectualismo, seja como vontade,
no voluntarismo) estabelecer limites e controles para paixões e desejos.
Egoísmo, agressividade, avareza, busca
ilimitada de prazeres corporais, sexualidade sem freios, mentira, hipocrisia,
má-fé, desejo de posse (tanto de coisas como de pessoas), ambição desmedida,
crueldade, medo, covardia, preguiça, ódio, impulsos assassinos, desprezo pela
vida e pelos sentimentos alheios são algumas das muitas paixões que nos tornam
imorais e incapazes de relações decentes e dignas com os outros e conosco
mesmos. Quando cedemos a elas, somos viciosos e culpados. A ética apresenta-se,
assim, como trabalho da inteligência e/ou da vontade para dominar e controlar
essas paixões.
Uma paixão – amor, ódio, inveja,
ambição, orgulho, medo – coloca-nos à mercê de coisas e pessoas que desejamos
possuir ou destruir. O racionalismo ético define a tarefa da educação moral e
da conduta ética como poderio da razão para impedir-nos de perder a liberdade
sob os efeitos de paixões desmedidas e incontroláveis. Para tanto, a ética racionalista
distingue necessidade, desejo e vontade.
A necessidade diz respeito a tudo
quanto necessitamos para conservar nossa existência: alimentação, bebida,
habitação, agasalho no frio, proteção contra as intempéries, relações sexuais
para a procriação, descanso para desfazer o cansaço, etc.
Para os seres humanos, satisfazer às
necessidades é fonte de satisfação. O desejo parte da satisfação de
necessidades, mas acrescenta a elas o sentimento do prazer, dando às coisas, às
pessoas e às situações novas qualidades e sentidos. No desejo, nossa imaginação
busca o prazer e foge da dor pelo significado atribuído ao que é desejado ou
indesejado.
A maneira como imaginamos a satisfação,
o prazer, o contentamento que alguma coisa ou alguém nos dão transforma esta
coisa ou este alguém em objeto de desejo e o procuramos sempre, mesmo quando
não conseguimos possuí-lo ou alcançá-lo. O desejo é, pois, a busca da fruição
daquilo que é desejado, porque o objeto do desejo dá sentido à nossa vida,
determina nossos sentimentos e nossas ações. Se, como os animais, temos
necessidades, somente como humanos temos desejos. Por isso, muitos filósofos
afirmam que a essência dos seres humanos é desejar e que somos seres
desejantes: não apenas desejamos, mas sobretudo desejamos ser desejados por
outros.
A vontade difere do desejo por possuir
três características que este não possui:
1. o ato voluntário implica um esforço
para vencer obstáculos. Estes podem ser materiais (uma montanha surge no meio
do caminho), físicos (fadiga, dor) ou psíquicos (desgosto, fracasso,
frustração). A tenacidade e a perseverança, a resistência e a continuação do
esforço são marcas da vontade e por isso falamos em força de vontade ;
2. o ato voluntário exige discernimento
e reflexão antes de agir, isto é, exige deliberação, avaliação e tomada de
decisão. A vontade pesa, compara, avalia, discute, julga antes da ação;
3. a vontade refere-se ao
possível, isto é, ao que pode ser ou deixar de ser e que se torna real ou
acontece graças ao ato voluntário, que atua em vista de fins e da previsão das
conseqüências. Por isso, a vontade é inseparável da responsabilidade.
O desejo é paixão. A vontade, decisão.
O desejo nasce da imaginação. A vontade se articula à reflexão. O desejo não
suporta o tempo, ou seja, desejar é querer a satisfação imediata e o prazer
imediato. A vontade, ao contrário, realiza-se no tempo; o esforço e a
ponderação trabalham com a relação entre meios e fins e aceitam a demora da
satisfação. Mas é o desejo que oferece à vontade os motivos interiores e os
fins exteriores da ação. À vontade cabe a educação moral do desejo. Na
concepção intelectualista, a inteligência orienta a vontade para que esta
eduque o desejo. Na concepção voluntarista, a vontade boa tem o poder de educar
o desejo, enquanto a vontade má submete-se a ele e pode, em muitos casos,
pervertê-lo.
Consciência, desejo e vontade formam o
campo da vida ética: consciência e desejo referem-se às nossas intenções e
motivações; a vontade, às nossas ações e finalidades. As primeiras dizem
respeito à qualidade da atitude interior ou dos sentimentos internos ao sujeito
moral; as últimas, à qualidade da atitude externa, das condutas e dos
comportamentos do sujeito moral.
Para a concepção racionalista, a
filosofia moral é o conhecimento das motivações e intenções (que movem
interiormente o sujeito moral) e dos meios e fins da ação moral capazes de
concretizar aquelas motivações e intenções. Convém observar que a posição de
Kant, embora racionalista, difere das demais porque considera irrelevantes as
motivações e intenções do sujeito, uma vez que a ética diz respeito à forma
universal do ato moral, como ato livre de uma vontade racional boa, que age por
dever segundo as leis universais que deu a si mesma. O imperativo categórico
exclui motivos e intenções (que são sempre particulares) porque estes o
transformariam em algo condicionado por eles e, portanto, o tornariam um
imperativo hipotético, destruindo-o como fundamento universal da ação ética por
dever.
Ética das
emoções e do desejo
O racionalismo ético não é a única
concepção filosófica da moral. Uma outra concepção filosófica é conhecida como
emotivismo ético.
Para o emotivismo ético, o fundamento
da vida moral não é a razão, mas a emoção. Nossos sentimentos são causas das
normas e dos valores éticos. Inspirando-se em Rousseau, alguns emotivistas
afirmam a bondade natural de nossos sentimentos e nossas paixões, que são, por
isso, a forma e o conteúdo da existência moral como relação intersubjetiva e
interpessoal. Outros emotivistas salientam a utilidade dos sentimentos ou das
emoções para nossa sobrevivência e para nossas relações com os outros, cabendo
à ética orientar essa utilidade de modo a impedir a violência e garantir
relações justas entre os seres humanos.
Há ainda uma outra concepção ética,
francamente contrária à racionalista (e, por isso, muitas vezes chamada de
irracionalista), que contesta à razão o poder e o direito de intervir sobre o
desejo e as paixões, identificando a liberdade com a plena manifestação do
desejante e do passional. Essa concepção encontra-se em Nietzsche e em vários
filósofos contemporâneos.
Embora com variantes, essa concepção
filosófica pode ser resumida nos seguintes pontos principais, tendo como
referência a obra nietzscheana A genealogia da moral:
? a moral racionalista foi erguida com
finalidade repressora e não para garantir o exercício da liberdade;
? a moral racionalista transformou tudo
o que é natural e espontâneo nos seres humanos em vício, falta, culpa, e impôs
a eles, com os nomes de virtude e dever, tudo o que oprime a natureza humana;
? paixões, desejos e vontade referem-se
à vida e à expansão de nossa força vital, portanto, não se referem,
espontaneamente, ao bem e ao mal, pois estes são uma invenção da moral
racionalista;
? a moral racionalista foi inventada
pelos fracos par a controlar e dominar os fortes, cujos desejos, paixões e
vontade afirmam a vida, mesmo na crueldade e na agressividade. Por medo da
força vital dos fortes, os fracos condenaram paixões e desejos, submeteram a
vontade à razão, inventaram o dever e impuseram castigos para os
transgressores;
? transgredir normas e regras
estabelecidas é a verdadeira expressão da liberdade e somente os fortes são
capazes dessa ousadia. Para disciplinar e dobrar a vontade dos fortes, a moral
racionalista, inventada pelos fracos, transformou a transgressão em falta,
culpa e castigo;
? a força vital se manifesta como saúde
do corpo e da alma, como força da imaginação criadora. Por isso, os fortes
desconhecem angústia, medo, remorso, humildade, inveja. A moral dos fracos,
porém, é atitude preconceituosa e covarde dos que temem a saúde e a vida,
invejam os fortes e procuram, pela mortificação do corpo e pelo sacrifício do
espírito, vingar-se da força vital;
? a moral dos fracos é produto do
ressentimento, que odeia e teme a vida, envenenando-a com a culpa e o pecado,
voltando contra si mesma o ódio à vida;
? a moral dos ressentidos, baseada no
medo e no ódio à vida (às paixões, aos desejos, à vontade forte), inventa uma
outra vida, futura, eterna, incorpórea, que será dada como recompensa aos que
sacrificarem seus impulsos vitais e aceitarem os valores dos fracos;
? a sociedade, governada por fracos
hipócritas, impõe aos fortes modelos éticos que os enfraqueçam e os tornem prisioneiros
dóceis da hipocrisia da moral vigente;
? é preciso manter os fortes,
dizendo-lhes que o bem é tudo o que fortalece o desejo da vida e o mal tudo o
que é contrário a esse desejo.
Para esses filósofos, que podemos
chamar de anti-racionalistas, a moral racionalista ou dos fracos e ressentidos
que temem a vida, o corpo, o desejo e as paixões é a moral dos escravos, dos
que renunciam à verdadeira liberdade ética. São exemplos dessa moral de
escravos: a ética socrática, a moral kantiana, a moral judaico-cristã, a ética
da utopia socialista, a ética democrática, em suma, toda moral que afirme que
os humanos são iguais, seja por serem racionais (Sócrates, Kant), seja por
serem irmãos (religião judaico-cristã), seja por possuírem os mesmos direitos
(ética socialista e democrática).
Contra a concepção dos escravos,
afirma-se a moral dos senhores ou a ética dos melhores, dos aristoixiii, a
moral aristocrática, fundada nos instintos vitais, nos desejos e naquilo que
Nietzsche chama de vontade de potência, cujo modelo se encontra nos guerreiros
belos e bons das sociedades antigas, baseadas na guerra, nos combates e nos
jogos, nas disputas pela glória e pela fama, na busca da honra e da coragem.
Essa
concepção da ética suscita duas observações:
Em primeiro lugar, lembremos que a
ética nasce como trabalho de uma sociedade para delimitar e controlar a
violência, isto é, o uso da força contra outrem. Vimos que a filosofia moral se
ergue como reflexão contra a violência, em nome de um ser humano concebido como
racional, desejante, voluntário e livre, que, sendo sujeito, não pode ser
tratado como coisa. A violência era localizada tanto nas ações contra outrem –
assassinato, tortura, suplício, escravidão, crueldade, mentira, etc. – como nas
ações contra nós mesmos – passividade, covardia, ódio, medo, adulação, inveja,
remorso, etc. A ética se propunha, assim, a instituir valores, meios e fins que
nos libertassem dessa dupla violência.
Os críticos da moral racionalista,
porém, afirmam que a própria ética, transformada em costumes, preconceitos
cristalizados e sobretudo em confiança na capacidade apaziguadora da razão,
tornou-se a forma perfeita da violência.
Contra ela, os anti-racionalistas
defendem o valor de uma violência nova e purificadora – a potência ou a força
dos instintos -, considerada libertadora. O problema consiste em saber se tal
violência pode ter um papel liberador e suscitar uma nova ética.
Em segundo lugar, é curioso observar
que muitos dos chamados irracionalistas contemporâneos baseiam-se na
psicanálise e na teoria freudiana da repressão do desejo (fundamentalmente, do
desejo sexual). Propõem uma ética que libere o desejo da repressão a que a
sociedade o submeteu, repressão causadora de psicoses, neuroses, angústias e
desesperos. O aspecto curioso está no fato de que Freud considerava
extremamente perigoso liberar o id, as pulsões e o desejo, porque a psicanálise
havia descoberto uma ligação profunda entre o desejo de prazer e o desejo de
morte, a violência incontrolável do desejo, se não for orientado e controlado
pelos valores éticos propostos pela razão e por uma sociedade racional.
Essas duas observações não devem,
porém, esconder os méritos e as dificuldades da proposta moral
anti-racionalista. É o seu grande mérito desnudar a hipocrisia e a violência da
moral vigente, trazer de volta o antigo ideal de felicidade que nossa sociedade
destruiu por meio da repressão e dos preconceitos. Porém, a dificuldade, como
acabamos de assinalar acima, está em saber se o que devemos criticar e
abandonar é a razão ou a racionalidade repressora e violenta, inventada por
nossa sociedade, que precisa ser destruída por uma nova sociedade e uma nova
racionalidade.
Sob esse aspecto, é interessante
observar que não só Freud e Nietzsche criticaram a violência escondida sob a
moral vigente em nossa Cultura, mas a mesma crítica foi feita por Bergson
(quando descreveu a moral fechada) e por Marx, quando criticou a ideologia
burguesa.
Marx afirmava que os valores da moral
vigente – liberdade, felicidade, racionalidade, respeito à subjetividade e à
humanidade de cada um, etc. – eram hipócritas não em si mesmos (como julgava
Nietzsche), mas porque eram irrealizáveis e impossíveis numa sociedade violenta
como a nossa, baseada na exploração do trabalho, na desigualdade social e
econômica, na exclusão de uma parte da sociedade dos direitos políticos e
culturais. A moral burguesa, dizia Marx, pretende ser um racionalismo
humanista, mas as condições materiais concretas em que vive a maioria da
sociedade impedem a existência plena de um ser humano que realize os valores
éticos. Para Marx, portanto, tratava-se de mudar a sociedade para que a ética
pudesse concretizar-se.
Críticas semelhantes foram feitas por
pensadores socialistas, anarquistas, utópicos, para os quais o problema não se
encontrava na razão como poderio dos fracos ressentidos contra os fortes, mas
no modo como a sociedade está organizada, pois nela o imperativo categórico
kantiano, por exemplo, não pode ser respeitado, uma vez que a organização
social coloca uma parte da sociedade como coisa, instrumento ou meio para a
outra parte.
Ética e
psicanálise
Quando estudamos o sujeito do
conhecimento (unidade 4, capítulo 7), vimos que a psicanálise introduzia um
conceito novo, o inconsciente, que limitava o poder soberano da razão e da
consciência, além de descortinar a sexualidade como força determinante de nossa
existência, nosso pensamento e nossa conduta.
No caso da ética, a descoberta do
inconsciente traz conseqüências graves tanto para as idéias de consciência
responsável e vontade livre quanto para os valores morais.
De fato, se, como revela a psicanálise,
somos nossos impulsos e desejos inconscientes e se estes desconhecem barreiras
e limites para a busca da satisfação e, sobretudo, se conseguem a satisfação
burlando e enganando a consciência, como, então, manter, por exemplo, a ideia de vontade livre que age por dever? Por outro lado, se o que se passa em nossa
consciência é simples efeito disfarçado de causas inconscientes reais e
escondidas, como falar em consciência responsável? Como a consciência poderia
responsabilizar-se pelo que desconhece e que jamais se torna consciente?
Mais grave, porém, é a conseqüência
para os valores morais. Em lugar de surgirem como expressão de finalidades
propostas por uma vontade boa e virtuosa que deseja o bem, os valores e fins
éticos surgem como regras e normas repressivas que devem controlar nossos
desejos e impulsos inconscientes. Isso coloca dois problemas éticos novos. Em
primeiro lugar, como falar em autonomia moral, se o dever, os valores e os fins
são impostos ao sujeito por uma razão oposta ao inconsciente e, portanto,
oposta ao nosso ser real? A razão não seria uma ficção e um poder repressivo
externo, incompatível com a definição da autonomia? Em segundo lugar, visto que
os desejos inconscientes se manifestam por disfarces, como a razão poderia
pretender controlá-los sob o dever e as virtudes, se não tem acesso a eles?
A psicanálise mostra que somos
resultado e expressão de nossa história de vida, marcada pela sexualidade
insatisfeita, que busca satisfações imaginárias sem jamais poder satisfazer-se
plenamente. Não somos autores nem senhores de nossa história, mas efeitos dela.
Mostra-nos também que nossos atos são realizações inconscientes de motivações
sexuais que desconhecemos e que repetimos vida afora.
Do ponto de vista do inconsciente,
mentir, matar, roubar, seduzir, destruir, temer, ambicionar são simplesmente
amorais, pois o inconsciente desconhece valores morais. Inúmeras vezes,
comportamentos que a moralidade julga imorais são realizados como autodefesa do
sujeito, que os emprega para defender sua integridade psíquica ameaçada (real
ou fantasmagoricamente). Se são atos moralmente condenáveis, podem, porém, ser
psicologicamente necessários. Nesse caso, como julgá-los e condená-los
moralmente?
Faríamos, porém, uma interpretação
parcial da psicanálise se considerássemos apenas esse aspecto de sua grande
descoberta, ignorando um outro que também lhe é essencial. De fato, a
psicanálise encontra duas instâncias ou duas faces antagônicas no inconsciente:
o id ou libido sexual, em busca da satisfação, e o superego ou censura moral,
interiorizada pelo sujeito, que absorve os valores de sua sociedade.
Nossa psique é um campo de batalha
inconsciente entre desejos e censuras. O id ama o proibido; o superego quer ser
amado por reprimir o id, imaginando-se tanto mais amado quanto mais repressor.
O id desconhece fronteiras; o superego só conhece barreiras. Vencedor, o id é
violência que destrói os outros. Vencedor, o superego é violência que destrói o
sujeito. Neuroses e psicoses são causadas tanto por um id extremamente forte e
um superego fraco, quanto por um superego extremamente forte e um id fraco. A
batalha interior só pode ser decidida em nosso proveito por uma terceira
instância: a consciência.
Descobrir a existência do inconsciente
não significa, portanto, esquecer a consciência e abandoná-la como algo
ilusório ou inútil. Pelo contrário, a psicanálise não é somente uma teoria
sobre o ser humano, mas é antes de tudo uma terapia para auxiliar o sujeito no
autoconhecimento e para conseguir que não seja um joguete das forças
inconscientes do id e do superego.
No caso específico da ética, a
psicanálise mostrou que uma das fontes dos sofrimentos psíquicos, causa de
doenças e de perturbações mentais e físicas, é o rigor excessivo do superego,
ou seja, de uma moralidade rígida, que produz um ideal do ego (valores e fins
éticos) irrealizável, torturando psiquicamente aqueles que não conseguem
alcançá-lo, por terem sido educados na crença de que esse ideal seria
realizável.
Quando uma sociedade reprime os desejos
inconscientes de tal modo que não possam encontrar meios imaginários e
simbólicos de expressão, quando os censura e condena de tal forma que nunca
possam manifestar-se, prepara o caminho para duas alternativas igualmente
distantes da ética: ou a transgressão violenta de seus valores pelos sujeitos
reprimidos, ou a resignação passiva de uma coletividade neurótica, que confunde
neurose e moralidade.
Em outras palavras, em lugar de ética,
há violência; por um lado, violência da sociedade, que exige dos sujeitos
padrões de conduta impossíveis de serem realizados e, por outro lado, violência
dos sujeitos contra a sociedade, pois somente transgredindo e desprezando os
valores estabelecidos poderão sobreviver.
Em suma, sem a repressão da
sexualidade, não há sociedade nem ética, mas a excessiva repressão da sexualidade
destruirá, primeiro, a ética e, depois, a sociedade.
O que a psicanálise propõe é uma nova
moral social que harmonize, tanto quanto for possível, os desejos
inconscientes, as formas de satisfazê-los e a vida social. Essa moral,
evidentemente, só pode ser realizada pela consciência e pela vontade livre, de
sorte que a psicanálise procura fortalecê-las como instâncias moderadoras do id
e do superego. Somos eticamente livres e responsáveis não porque possamos fazer
tudo quanto queiramos, nem porque queiramos tudo quanto possamos fazer, mas
porque aprendemos a discriminar as fronteiras entre o permitido e o proibido,
tendo como critério ideal a ausência da violência interna e externa.
Referência
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia.São Paulo: Editora Ática, 2010.
Referência
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia.São Paulo: Editora Ática, 2010.
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